domingo, 28 de agosto de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil



MATEMÁTICA DE CORDEL Enquanto a primavera se ausenta, enquanto a primavera demora, enquanto a primavera não chega, muito sangue correrá pelas veias e sarjetas, e só a bossa-nova fará esquecer o caos. Meus desejos porém estarão em desordem, meu andar em desordem andará. As baianas enfileiradas no carnaval ansiarão pela desordem da antiga avenida. Do alto, a desordenada arquibancada acolherá o suor dos meus pés até às cinzas da quarta-feira de cinzas. Depois haverá lembranças sombrias de Policarpo Quaresma. Será quaresma no país que me consome e que consumo. Eu, sujeito, prossigo. O novo big-bang das vontades divinas faz duns homens projéteis, e doutros homens os alvos. Deus-bomba, deus-beijo, deus-Deus. Homem-bomba, homem-beijo, homem-homem. Eu, objeto, caminho vendo a primavera ao longe, contemplando-a lenta, ouvindo-a aproximar-se. Um avanço de unhas de gato temperamental na pele macia – terror. Eis o progresso que alcanço. Uma fila quilométrica no albergue da prefeitura. Progresso? Progresso! – fruto de tanta, de tamanha ordem. Eu, sujeito-objeto, qual formiga trabalho em louvor à primavera. O exército alienista não poderá alienar-me. Sou sujeito diante do objeto, objeto diante do sujeito, sujeito-objeto diante do objeto-sujeito.

domingo, 21 de agosto de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil



DESPENSA EM REFORMA Imagina uma reforma na despensa. Sempre há luz no fim do túnel, que há túnel no fim da luz. Decide, você. Ajude, tu. Vê, você. Veja, tu. Vê a despensa vazia. Tudo o que disse, tudo o que fiz, foi verdade. Tudo o que inventei, tudo o que esqueci, foi saudade. Já não caibo num país inteiro. Já uma língua-mãe me não embala. Vexa-me a naturalidade com que emissoras de sistemas de visualização à distância exibem cenas de realidades desviadas, transviadas, travestidas. Fico contrariado. Alegrar-me-ia a magnitude silenciosa e viva dum aquário. Por horas. Por horas. Depois, porém, voltaria à mente o apocalipse, a idade-média, a república, o êxodo, a democracia, o big-bang, o dia D, a diáspora, o 13 de maio, a guerra-fria, o 11 de setembro, o gênese, a queda de bastilha, o 9 de julho, todos esses dias de Jesus Cristo. Que inventaram luz e túnel. Que inventaram túnel e luz. Imagina uma despensa em reforma.

domingo, 14 de agosto de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil


REFLEXÃO MANUAL Eu que alcanço o mundo, no fundo, no fundo, fujo de mim que por ele sou alcançado. A minha derrota funde-se com a vitória que gritam. Esse Brasil amanheceu mais vivaz, acontecendo, porém, como os submundos acontecem. Enquanto os senhores discutiam a pauta do dia, a ordem do dia, a festa do dia, um Túlio, um Avelino, uma certa Julieta ou Cecília escarafunchavam os arquivos da realidade e descobriam novos frutos nunca jamais never saboreados pela pessoa humana, nem pela sobre-humana. Eu, que alcanço o mundo, no fundo, no fundo, nada valho quando penso em pôr um preço na testa e seguir pelas ruas a distribuir relíquias a troco de esmolas, dividendos, cachês, ordenados, patentes, salários, royalties, reajustes, copyrights, todas essas coisas que forram bem o estômago. Eu seguia com o estômago forrado saltando dum castelo para outro fingindo não ver a decadência instalada entre os castelos. Eu alcanço o mundo. Creia nisso. O seu rosto expressa dúvida, tanta dúvida, tantas dúvidas, que me sinto compelido a manifestar-me dessa maneira atroz. Perdão. Um dia vou-lhe derramar cores de uma alegre aquarela. Por ora, só posso garantir que nossa gente é sóbria e feliz porque sua inteligência é contínuo passatempo.

domingo, 7 de agosto de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil




ANNUS HORRIBILIS Será feito quanto substitua a liberdade das ruas, a atmosfera dos bares, uma simples ida ao teatro com ingressos populares. A popularidade dos miseráveis há muito em alta exalta ações que os tribunais de contas abraçam com vários braços e amplos bolsos. O poeta nato manifesta as flagrantes fotografias feitas em suas câmeras viscerais – sometimes true, sometimes foolish – e é ridicularizado. Os negativos são levados por enchentes de cidades tombadas, mentes tombadas. Artesanato, arte descartável, arte clássica, plástica, de clowns suburbanos: arte subordina-se ao princípio da incerteza, da regra cega, de milhões de martelos e cálculos estratosféricos, da tristeza súbita das mulheres e outros tipos de sangue. Quantos elementos serão necessários para convencer um homem-pessoa a esquecer de vez o projeto manhatan ao invés de lançar-se da janela alta? Eu vou plácido por fora, por dentro uma sangria desatada, caminhando e cantando e rangendo os dentes até ao palácio para cuspir no chão ignóbil e distante de tudo que não seja estatiscrático, tecnocrático. Pião, vídeo-games, bolinhas-de-gude, bonecas, pelúcias, carrinhos-de-corrida, ioiôs, bambolês, brinquedos e papais-noéis subjugam-se ao que ser, que comprar, que gastar, que esquecer, que inventar, quem enganar. Quantos milhões de decibéis serão suficientes para que o senhor da mentira ouça uma ária da verdade? Eis a perfeição do mundo: forças do atraso a balas e objetos cortantes para fazer temer, fazer tremer, fazer calar. Estado-e-bandidos-unidos-sociedade-anônima. Olhares continuistas lançam os inconformados num precipício e o big business curte sol na ilha de rostos. This is the world that we created. Muitos beijos e carícias serão necessários para crer em algo que simbolize futuro. É preciso beijar. É preciso que se deixe beijar.

João Rosa de Castro - Despedida - Encerramento do Blogue Lume d'Arena

Prezado leitor. É com imensa satisfação que venho expressar minha gratidão a todos que visitaram, leram, compartilharam e acompanharam o L...