domingo, 30 de outubro de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil


OPUS DEI Tomou pelo braço o pensamento e sacudiu-o. Disse ter o pensamento o mesmo peso e dimensão do ato. Seus amigos sucumbiram ao mal de amores. Ele não sucumbiu também, que nunca teve amores. Ingerira uma certa náusea – uma ojeriza – a tudo que configurasse romântico. Fugindo de conversações lúdicas. Fugindo de ambientes perfumados; achava tudo muito caro – sentia-se pobre mesmo com todos os sentidos avidamente ricos. Viu propaganda da festa que ostentava três por cento de elementos famosos e 97 de estranhos. Quis ir à festa. Só quis pois que era mais-que-estranho. E sua cama e sua casa e sua rua e sua cidade e seu país e seu planeta, tudo o que lhe pertencia foi tombado pelo patrimônio histórico de Deus. E disse-lhe Deus. – O teu pensamento voa mais alto. E Deus calou-se. Tendo ouvido a voz de Deus, o homem quis ir à igreja e foi. Viu uma edificação mui sacra que era, porém, shopping-center. Comprou, comprou, comprou – comprou esquecendo ser pobre. Sentiu um alívio depois da comprança. Indo com as compras deparou com ladravazes que nele bateram a dizer: “Salve! Salve! Salve!”. Levaram suas prendas quais deles. Ele não compreendeu nunca o que era Salve. Pensou, repensou, tornou pensar em Salve. Cansou-se de pensar, tomou o pensamento pelo braço, sacudiu-o. Esqueceu o que ouvira de Deus.

domingo, 23 de outubro de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil


REUNIÃO DE CONDOMÍNIO As crianças beiraram a loucura escondida na casa – não houve lapso, não houve colisão alguma; foi tudo capricho de infância e umas doses contadas de balbúrdia. Todavia, já passou, já passou. Quase cento e setenta milhões de soberanos foram lembrados e tiveram de reduzir o próprio aço. Os inocentes disseram que era tudo culpa desses vizinhos e lançaram bombas de gás lacrimogêneo contra eles. No fim de contas O Mais Pró-Fundo já havia enforcado os inocentes em cordas. Acima deles formaram fila indiana os trinta por cento de soberanos miseráveis. Formaram fila e se apresentaram de frente e perfil na câmara de consciência dos utentes assíduos do suor alheio. E tudo: o céu, a terra, os poços, as praças, tudo enfim tornou-se Piauí. E muitos – hipnotizados pela covardia – se emudeceram por amor de não apanhar em praça pública. Viram mais ou menos a tristeza afegã. Viram e ouviram de pouco a muito a desolação dos espíritos meridionais que de lá bradavam. Tiveram sede. Esses mesmos patrícios, que dançavam na Rua Direita com homenagem e pesar, compreenderam em tempo (conhecendo a mecânica da vida) que embora atados a essa doce pátria inconclusa, haviam de carregar sempre o pulso de fazer tudo o que fosse possível, tudo o que fosse impossível para se distinguirem de cadáveres. Mais um tempo e ficaram felizes.

domingo, 16 de outubro de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil


CHÃO E CIRCO Havia um risco desenhado na esquina deserta. O servidor trouxe-o direto para os jornais. O risco invadiu as praias e piscinas; tomou conta das lavadeiras de além-riacho. O risco foi secando os pratos e as mesas. O risco apossou-se das estações do ano e de trens. Havia um risco na virilha da criança bastarda. O que na pele se escondia alastrou-se pelo corpo e tomou-a toda, o espírito inteiro e a barba, em homem. O risco calou Beatles e beatos. Removeu montanhas com sua fé fabricada nas colunas decentes. Depois que descobriram como multiplicar versões brasileiras de rejoicing (um neomodo de acabar com o néon), depois, inda ao contarem as contas de ouro na sandália das neoninfetas (uma neomaneira de armazenar medo no humano coração), até Tenório – tão apaixonado – perdeu a amável namorada. E tudo virou a selva. E a selva virou vitrine. E a vitrine virou tudo. O risco sobressalente e tirânico encomendou pichação faltando cedilhas, instituiu viração nas mais santas cidades e transformou o mundo nesse mundo em que piso da noite para o dia.

domingo, 9 de outubro de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil


Haveria vontade própria aos homens supracitados se não tivessem sido lobotomizados em sua longa e prolífera infância. Teriam-se tornado infra-homens. Teriam sido infra-homens não tivessem com pé errado começado. Haveria a básica ordem e o digno progresso na vida desses senhores frutíferos se não os houvessem submetido a tribunais militares secretos. Por sorte, por sorte fazemos quanto determinais mas não vivemos como viveis. We do speak thy language but we do not give a shit for thy sermon. Cuidais que nos coagis, somos porém bons atores do real. Dizeis: lutam, prende-os! Quando pondes reparo em nossa luta, ela se traveste de dança e dizeis: dançam, deixa-os dançar! E dançamos deveras e rebolativos.  Golpes capoeiris. Nunca seremos tão coercíveis assim. Super-homens mascarados de flores de setembro – prosaicos. E haveria surtos de realidade brasileira no peito do pró-humano não fossem aplausos franceses cantando o êxito (e o bom gosto por gravatas e/ou perfumes caros), o melífluo e severo francês de sua excelência e sapiência. Impulsos propagandísticos caem bem à nossa pátria nesta hora: é estatisticamente correta a inocente alegria das gentes. É estatisticamente correto o quanto pensam, refletem, estudam, questionam. É estatisticamente correto o quanto cospem na cara de nós tecnocratas imbecis. Dissimulemos que os absurdos sejam normais no exato momento em que nos envergonhamos no caixa do supermercado. Finjamos. Faz de conta, faz de conta: nós ignaros. Haveria uma anexação descomplicada e fácil não fosse da sociedade esse pulso silencioso, hercúleo, laborioso e febril em se manter soberana. Pensáveis que mesmo unido nosso povo seria vencido. Errastes. Go back to thy home.

domingo, 2 de outubro de 2016

João Rosa de Castro - Amargo & Inútil


COLÔNIA É preciso muita educação sentimental para que se enxergue a beleza dessa arte tão vibrante, tão esplendorosa, praticada em praça pública. Há muito não exercito meus sentimentos, pois atordoado por mais um assalto federal acabei agachado na calçada recolhendo moedinhas de um centavo que restaram no bolso e foram rolando pelo meio-fio. Fiquei, fiquei e até hoje vou ficando agachado procurando as moedas espalhadas. Daí deu no rádio que os superpoderes afinal se uniram e rezaram pedindo coisas bonitas ao papai-do-céu. Quiseram tomar comunhão e tomaram. Deu no rádio. Deu no rádio. Uma liturgia nova fê-los esmorecer envergonhados e esmoreceram. Por fim deixaram de ter muitos ataques e acessos de histeria apopléctica, licenciosidade dolosa, esperteza ardil, vulgaridade caprichosa, mentira vil, ganância cega, covardia lúcida, ignorância crônica, todas essas propriedades com que não atino no Houaiss... Abriram mão da tecnocovardia (Vejam, os presentes, vejam!). Dormiram. Dormiram. Acordaram inteligentes quais os filhos da mandioca européia inteligentes. E o Brasil quase virou uma Europa toda bem grande em forma de coração bem grande. Eu até agora agachado que estava, fui-me erguendo e sentindo frio-muito-frio no Brasil. Minhas moedas foram ficando douradinhas quais as de lá. Os brasileiros principiaram falando inglês, ameriquês, francês, italiês, canadês, japonês, russês, todas essas linguagens faladas no gessete, geoito e nos mais gês que foram inventando com os anos e que serão ainda inventados. No que a neve já branquinha enfeitava até à Rua da Quitanda. E os brasileiros já também vestiam overcoat pela Sé, Santa Tereza e Boa Viagem e até principiaram pensando que estavam sendo invadidos pelos outros mundos novos. Os brasileiros não compreendiam a invasão. Deu no rádio. Deu no rádio. Tiveram até vexame de dança de garrafa, casas de alvenaria e muitos barracos de favelas. No entanto, todas essas choupanas foram se transformando em museus de grande arte, parques de belos jardins e assim formou-se a Europa do Sul com os miseráveis vivendo todos felizes e sem fome dentro dos museus, feitos obras de arte que se contentavam com a contemplação dos visitantes. As artes eram estátuas, estatuetas, quadros, instalações, cerâmicas, papel-machê, aquarelas, cristais lapidados, todos esses manjares pros olhos alheios. Tudo feito de ex-pessoas. Eu porém colhendo as moedas já feitas cêntimos de euro, principiei tendo muita saudade do Brasil d’outrora.

João Rosa de Castro - Despedida - Encerramento do Blogue Lume d'Arena

Prezado leitor. É com imensa satisfação que venho expressar minha gratidão a todos que visitaram, leram, compartilharam e acompanharam o L...